Por: Milena Flick
O curta-metragem BICHO de Shirley Ferreira é um ato poético de denúncia que toma como ponto de partida o relato da violência obstétrica sofrida pela artista. Entretanto, o trabalho produz deslocamentos e deslizamentos em nossa percepção dos fatos particulares da história narrada, tocando em dimensões que transbordam o pessoal para ecoar as experiências de muitas… Nele, acompanhamos o corpo de uma mulher negra duplicado, desdobrado em outro, atravessando o relato e (re)produzindo as experiências narradas num suporte poético. Esses corpos performam uma aproximação com a animalidade própria à existência humana (sutilmente celebrada nos corpos que dançam entrelaçados por um elo vermelho-sangue), mas também pela animalidade brutalizada, rebaixada à servidão, à exploração e à morte, culminando com a exposição e comercialização de sua carne em ambiente público.
Diferente do primeiro curta de Shirley Ferreira, no qual a performance do corpo duplo se potencializa no desvelamento de similaridades e diferenças, marcadas também pelo corpo nu de cada intérprete, (refiro-me ao filme “Solo Seco e Rachado”, no qual, a violência de gênero é tratada a partir de dois depoimentos intercalados e narrados por Shirley e Ricardo Fraga); em BICHO, parece que esse duplo evoca aproximações radicais: consigo, como uma mulher que gesta e pare a si mesma diante de uma experiência brutal de violência, num gesto de afirmação da vida; e com outros corpos, com os quais compartilha a experiência de dar à luz suas crias e a si mesmas, apesar dos abusos e maus tratos sofridos nesse processo.
Essa percepção é acentuada pela caracterização semelhante das performers (Shirley Ferreira e Noi Soul), em especial, pela uniformização de seus rostos, que em dado momento se apresentam cobertos por uma máscara orgânica sem boca, olhos ou narinas, apenas uma textura porosa que retira a marca identitária do rosto, socialmente compreendido como locus privilegiado de singularização, identificação e diferenciação. Esse “apagamento” identitário, amplia e desdobra as presenças ali instauradas, evitando que se fechem em suas experiências particulares, mas denunciando se tratar de um tipo de violência compartilhada com outras mulheres, sem rosto, sem nome, sem identidade, desconhecidas, invisibilizadas em suas dores.
Aqui cabe destacar que uma ampla pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo e pelo Sesc em 2010 intitulada “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”[1] apontou que, no país, cerca de uma em cada quatro mulheres havia sofrido algum tipo de violência em seu processo de pré-natal, parto e/ou pós-parto. E esse número poderia ser ainda maior, uma vez que nem todas conseguem reconhecer procedimentos e situações às quais foram submetidas, como dentro do espectro da violência obstétrica. Nesse sentido, é importante destacar que considera-se violência obstétrica aquela que decorre de negligência no atendimento e cuidado, englobando, também, as violências físicas, verbais e psicológicas sofridas por pessoas gestantes ou em processo de abortamento.
BICHO é também um manifesto que coloca a discussão da violência obstétrica em primeiro plano e questiona a invisibilidade dessas vivências, apontando como o machismo, o elitismo, o capacitismo, o racismo e outra série de preconceitos e discriminações agem desde as estruturas institucionais dos “espaços de saúde” ao tratamento ofertado às pacientes. E isso não se projeta apenas a partir do relato que acompanha as ações, mas, também, nas performances públicas realizadas na feira livre, em ruas da cidade de Vitória da Conquista e em frente a um hospital – cuja fachada, apresenta a inscrição “Amigo da Criança” –; no branco asséptico que embaça a nossa visão de algumas cenas e no branco médico que cala o grito necessário; na carne manuseada e dilacerada com destreza, corrompida em sua intimidade, exposta, a sangrar nua no mercado de gente; e na caminhada difícil e solitária de um corpo a carregar o peso duplo de uma vida prestes a se abrir para dar passagem a outra.
Como manifestação de uma voz que se insurge contra o silenciamento e a institucionalização de uma dor compartilhada por tantas, a cena do depoimento retoma e amplifica o chamado, o pedido, o grito ignorado na noite de sua experiência. Só que dessa vez, nós nos tornamos testemunhas: ouvimos seu apelo, assistimos a tesoura apontada em direção ao ventre, acompanhamos a faca e o martelo ceifando maquinalmente a carne animal, presenciamos sua denúncia e seu manifesto público. E por esse motivo, BICHO é também uma convocação.
O filme nos convoca porque nos afeta, nos atravessa, nos solicita presença e ação diante do que testemunhamos, sob risco de nos tornarmos cúmplices de um sistema violento, que conta com nosso silêncio e indiferença para que possa se perpetuar. Diante de BICHO não se admite impassibilidade ou descaso, porque ele mobiliza o que existe de força em nossa indignação, e, nesse sentido, cabe destacar que a trilha sonora de Tereza Raquel atua de forma brilhante ao acentuar esse convite em direção ao movimento e não à apatia: sem cair no lugar-comum diante de um depoimento que envolve sofrimento e violência, a trilha ressalta a potência de uma força sensível que emerge nos momentos em que o corpo duplo volta sua atenção para si, tocando sua própria animalidade como força criadora, num espaço de acolhimento desse corpo, que é morada, como afirma a própria Shirley.
Assim, BICHO também nos convoca a reavaliar certo pensamento ascético antropocêntrico que tende a apagar os rastros da animalidade, que se inscreve em nossa existência, em prol de uma suposta superioridade humana que, como sabemos, não se refere à totalidade desse grupo de viventes, mas a uma pequena fração privilegiada dele. Lançando foco para o que há de animalidade na vida humana, sem julgamentos morais e sem apologia ao sofrimento animal, o filme aponta as contradições da razão antropocêntrica que nega nossa porção animal, recriminando o instinto, a voracidade, a potência de vida, enquanto normaliza a violência, o abuso, a indiferença, a carnificina.
Por efeito dessa convocação, entre pessoas que, assim como eu, não são nem foram vítimas das mesmas violências retratadas pelo filme, emergirá a seguinte questão: “o que fazer, agora que me tornei testemunha?”.
Recentemente, a antropóloga feminista Debora Diniz respondeu em suas redes sociais a uma questão algo semelhante, feita por uma seguidora preocupada com a situação do Afeganistão e sentindo-se impotente diante da tragédia humanitária. Peço licença para citar parte de sua resposta:
[…] Se não olho, se silencio, sou conivente. Sim, meu silêncio é uma forma de conivência às opressões. O silêncio não nos salvará, já versaram muitas feministas antes de nós, como Audre Lorde. É uma forma de desresponsabilização à tragédia dos outros. […] A pergunta sobre falar da dor dos outros se desdobra em muitas: como, quando, com quem, quando é hora de escutar e aprender. Quero explorar só um pedacinho desse amalgamado de perguntas éticas e existenciais sobre a sobrevivência à tragédia das outras. Quem somos nós nesse encontro? Audiência de um espetáculo ou testemunhas com deveres éticos de ação? Eu sempre acreditei exercitar-me para o segundo: quero usar a palavra, a imagem, minha voz e tempo da vida para ser uma testemunha engajada. […] Não silencio. Não viro a página. Não banalizo. Entre uma dor e outra, uma coisa não me confundo: a dor desses povos é deles. Afetar-me pelo sofrimento alheio não é confundir-me: a dor é da outra, ela não se transfere para mim. O meu imobilismo ou angústia pelo que vejo não me salvará, não salvará nenhuma outra pessoa em sofrimento. Assim, o que fazer? Escrever se esse for seu jeito; doar a organizações humanitárias, se você tem recursos; estudar com outros para formar grupos de aprendizado. O que nunca deve fazer é deixar-se ser cínico à tragédia dos outros. (DINIZ, 2021)[2]
Assim, frente à convocação de BICHO e à provocação de Débora Diniz para que não sejamos apenas audiência, mas testemunhas engajadas, que nos coloquemos à disposição para a ação, a partilha, para uma escuta ativa e verdadeiramente comprometida com mudanças estruturais que possam romper os ciclos de opressão e violência desse sistema de mundo no qual vivemos, quero finalizar esse breve comentário reforçando o convite para que exercitemos nosso dever ético de resposta ao seu chamado. Assistam BICHO com o corpo todo ouvidos, deixem-se afetar pelas vozes que o trabalho ecoa e não silenciem esses afetos, compartilhem, convidem outras pessoas a se tornarem, também, suas testemunhas engajadas, e que possamos todes escutar a sua denúncia, reverberar o seu manifesto e responder à sua convocação.
M.Flick
Agosto/2021
[1]Consulte os dados da pesquisa e demais informações através do link: <www.fpa_.org_.br_sites_default_files_pesquisaintegra.pdf (apublica.org)>. Último acesso em 23.08.21 [2] Instagram: @debora_d_diniz. Acesse texto completo através do link: <https://www.instagram.com/p/CsrPLhQodYP/?utm_source=ig_web_copy_link> Último acesso em 23/08/21.
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