“Toda crítica é uma autobiografia”
(Oscar Wilde)
Eu estava preparada para falar da potência do curta-metragem não ficcional como meio de expressão absolutamente adequado – mais que isso, privilegiado – para a experimentação artística. Estava preparada para exaltar a efervescente ação cultural que a Ato3, Daniel Leite e companhia estão promovendo no cinema e audiovisual de Vitória da Conquista, com a potência de uma semente caleidoscópica que, sob ensejo de uma lei emergencial, faz emergir tantas e tão variadas belezas. Estava preparada para discorrer sobre a “translinguagem” artística vigorosa que pode surgir do encontro entre o cinema e a performance, com a bem-vinda contribuição de todos os necessários erros, os inesperados acertos e as insuspeitadas ousadias que nos salvam a cada dia.
Mas eu não estava preparada para o que vi – e ouvi – em Território das Cercas, o filme de Ricardo Fraga, com Shirley Ferreira e Balaio. Seres nus equilibrando‑se em ruínas, amarras demarcando as fronteiras das existências, singularidades cerceadas à bruta, arame farpado à flor da pele e sangue. Aos ouvidos, sons tensionados – como se tensiona uma cerca, uma corda, uma amarra; música marcando a pulso os depoimentos, relatos de constrangimentos familiares, de escárnios públicos, de autopunição, de sofrimentos vários, relacionados à descoberta da sexualidade e da identidade de gênero das três personagens. Construções poéticas que, ao falarem de si, falam também de tantas outras existências, qual narcisos às avessas, que, ao se molharem e se olharem no espelho d’água, fazem refletir não somente eles próprios, mas pessoas como eu (e, quem sabe, como você?).
Imagens e sons que, embora aparentemente disjuntivos, sublinham-se mutuamente, acentuando a dor e a aspereza das experiências relatadas. Imagens‑sínteses da cruel concretude das violências e incompreensões, dos conflitos e recuos de si mesmos, com uma plasticidade fílmica tão fascinante que dificilmente se desvanecerão na nossa memória:
Violão de cordas farpadas – espinhoso arame dedilhado por dedos que se ferem, como almas melódicas que, embora feridas, não deixarão de tocar.
Armário decrépito, plantado no ermo, de onde urge escapar. (E aqui o êxito de um dos maiores riscos estéticos assumidos pelo filme, sobrepondo a narrativa do “coming out” ao signo visual literal de “sair do armário”. Construção exitosa, a meu ver, justamente por voltar à literalidade da imagem para transcender a familiaridade da expressão, já de certa forma desgastada pelo uso corrente, e nos fazer perceber o absurdo da condição de se habitar metaforicamente um espaço exíguo, inóspito, insalubre, aviltante, onde é impossível que seres humanos alcancem a plenitude de sua existência. Um não-lugar de onde se deve evadir, para se adentrar plenamente a vida.)
Etc, etc. Não cabe traduzir o que se deve vivenciar por si. Momento exortação: vá e veja!
Território das Cercas, um filme que nos atravessa. E isto eu digo desistindo de evitar o termo “atravessamento” (que já se arrisca a clichê), por não encontrar outro que melhor sintetize a experiência: sensação de ser atravessada por um insólito arame farpado, subitamente arrancado de onde indevidamente se alojou. Um filme pungente, incômodo, necessário. E, sobretudo, belo – as feridas da incompreensão que se purgam pela criação estética. E também, é claro, pela fruição.
Eu realmente não estava preparada; e foi melhor assim.
Em tempo: toda crítica é uma (maldisfarçada) autoanálise.
Hendye Gracielle
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