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Zezinho, a lâmpada e o sonho

Por: Rogério Luiz Oliveira


O sonho de Zezinho é a realização de um desejo alimentado por décadas. É um filme que materializa, ficcionalmente, um anseio íntimo. Numa justa ode audiovisual à imaginação, trata de coisas que mobilizam uma existência. As quatro frases de abertura do curta-metragem apontam nessa direção: “Muitos dos nossos sonhos ficaram pelo caminho. A vida impiedosamente os tragou de nós. Porém alguns deles nos acompanham por toda nossa existência. E é isso que nos move”. Escrita pelo próprio diretor Edmundo Lacerda, as letras garrafais fazem referência aos sonhos de um menino que, agora, fantasia e filma episódios da própria infância.


Cartaz: Cristiano Martins
Cartaz: Cristiano Martins

A narrativa faz uso de um flashback, recurso caro ao cinema. O diretor, na ficção, interrompe uma filmagem para atravessar as portas de suas memórias. Levando-nos para um mundo onírico, nos coloca diante de uma criança guardiã da aventura do cinema. A exemplo das histórias similares de Totó, em Cinema Paradiso (1988), ou Jacquot de Nantes, em filme homônimo (1991) belamente dirigido por Agnès Varda, o pequeno Zezinho atordoa o tempo-espaço ao seu redor que parece não compreender o seu rompante imaginário. Longe do continente europeu – onde as duas histórias supracitadas se passam -, o personagem criado no roteiro transita pelas veredas de um sertão nordestino cada vez mais longínquo no tempo.

Na feira, Zezinho faz carreto com a galeota; nas casas, oferece o seu serviço de engraxate. Estratégias de uma criança que quer juntar dinheiro com dois nobres objetivos: ajudar a mãe na feira e comprar entradas para assistir filmes no Cine Fênix. De passagem, cabe dizer, que mesmo quando não é possível estar na sala de projeção, seu jogo de cintura fantasioso o permite criar a própria experiência cinematográfica. Essas duas buscas do personagem – suprir a casa e ir ao cinema -, apontam, por sua vez, para aspectos destacáveis da narrativa.

Por um lado, ao falarmos da mãe, encontramos a atuação de Dayse Maria, nesse caso representante de um elenco que dá vida à trama de maneira genuína. É um conjunto de feições, gestos e jeitos de falar que oferece uma experiência singular. Seja no canto devoto da mãe do protagonista, na negociação na feira, na visita a Seu Roque – o dono da venda -, a presença do elenco emana autenticidade e preenche a tela com rostos e corpos que dialogam com a espacialidade do filme por parecerem naturalmente integrados aos lugares.

De outra maneira, ao pensarmos no objetivo de vivenciar a experiência da sala escura, acabamos por perceber o quanto O Sonho de Zezinho é uma homenagem ao próprio cinema. A montagem, assinada por Raul Ribeiro, prolonga o sonho de Zezinho no decurso da história do audiovisual. As traquinagens do protagonista ecoam em planos de filmes como Um homem com a câmera (1929), Stagecoach (1939), Oliver Twist (1948), Era uma vez no Oeste (1968). Os fragmentos escolhidos amplificam as ações do filme de maneira sagaz e articulada com as cenas protagonizadas pelo menino.

A reorganização das memórias de infância ainda é possível a partir do modo como a vontade de criar uma experiência cinematográfica para/com os amigos, faz de Zezinho um inventor. E nisso, o filme parece encontrar o seu aspecto mais envolvente. Do mesmo modo como as outras duas crianças da história do cinema antes citadas, o grande barato do protagonista idealizado por Edmundo Lacerda é justamente a busca por construir seu próprio projetor de cinema. Lâmpada, espelho, pedaço de plástico, caneta, a luz do sol e a grande vontade de ver seu próprio filme, construído a mão, projetado na parede. A peça que reúne todos esses elementos é uma imaginação de fertilidade inspiradora. É como se nos convidasse para pensar que a chave para lidarmos com o mundo está na ressignificação daquilo que já está ao nosso redor.

Com O Sonho de Zezinho, acabamos por ter a sensação de que a criança não quer apenas inventar uma máquina. O que ela quer mesmo é inventar mundos. Nisso, Edmundo, Zezinho, Jacquot de Nantes, Totó, todos eles se aproximam da mesma ideia que inunda a poesia de Manoel de Barros. Ao forjar palavras, imagens, silêncios e instrumentos para esticar o horizonte, abrir os amanheceres ou encolher os rios, o poeta parece sintetizar o desejo que alimenta as crianças que habitam personagens ou pessoas reais que não sufocam seus sonhos. O sentimento que move as palavras de Manoel de Barros é o mesmo que faz com que Zezinho queira transformar os tais objetos em máquina de sonhos.

Como o cinema é sempre um sonho que se realiza de maneira coletiva, não se pode perder de vista os aspectos plásticos do filme. Não passa despercebido o esmero da direção de arte concebida por Lívia Liu. A escolha de locações e a transformação desses espaços pela cenografia deixa a atmosfera de reminiscências ainda mais mágica. Seja a reconstrução sutil da fachada do cinema, a cozinha onde a mãe prepara a comida, a banca de frutas e verduras na feira, a escolha e disposição dos produtos na venda de Seu Roque, os brinquedos de Zezinho, em todas as escolhas há um tom adequado à história. Essa ambientação, somada ao figurino, nos remete a um tempo que, é bem verdade, pode ser compatível com as lembranças do diretor. Contudo, e mais que isso, a combinação dos tons da arte com a direção de fotografia e a cor impressa na pós-produção, cria um mundo particular e original.

A direção de fotografia, a propósito, sob responsabilidade de L. H. Girarde, equilibra bem os instantes de repouso e movimento ao acompanhar a jornada de um menino que não pára quieto um só instante. Seja por meio da luz que ora é integrada de forma natural à imagem, ora é pensada para criar uma expressiva espacialidade, como é o caso do esquema de luz do interior da cozinha da casa de Zezinho. A operação de câmera respeita o princípio dinâmico imposto pelo menino que tanto corre atrás da bola quanto, de forma solitária no silêncio do próprio quarto, desenvolve sua máquina de sonhos.

Após o mergulho de vinte minutos nas imagens e sons dessa obra cinematográfica, estendemos o significado das palavras de abertura do filme. Ao reunir os amigos a fim de mostrar a eles a magia de sua invenção, numa das mais belas cenas do filme, o menino monta o seu projetor e diz que agora é “preciso esperar a nuvem passar para o sol chegar” e, nesse caso, cumprir sua função de atravessar o instrumento desenvolvido por ele a fim de projetar as imagens na parede. Curioso o quanto, ao fazer isso, Edmundo Lacerda, por meio do seu personagem, demonstra que a realização de sonhos íntimos estão associados à paciência. Essa concretização às vezes depende da passagem das nuvens e leva minutos. Às vezes, advém das condições e circunstâncias que precisam de décadas para chegar. Mas chegam. A história de Zezinho nos dá prova disso e a lição de que um dos caminhos para a materialização dos sonhos de outrora, talvez esteja na persistência em ressignificar as coisas ordinárias. Não à tôa, uma lâmpada, tão comumente utilizada no nosso dia-a-dia para iluminar a escuridão cotidiana das nossas casas, serve como elemento cênico fundamental a nos mostrar que a luz é ainda mais instigante quando dá vida e movimento a sonhos.

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